domingo, 24 de janeiro de 2010

AS DEFESAS DO HOMEM de Lisélia de Abreu Marques


O homem está numa fase de desenvolvimento intermediário. Ele não é como uma criatura das profundezas abissais, nem tão pouco um anjo de luz. Está no meio do caminho da evolução.

O homem da Terra ainda é imaturo emocionalmente. Em AVATAR, Neytiri chama Jack Sully de criança, diz que ele é como um bebê, que faz muito barulho, mas não sabe o que faz. Somos todos como o Jack, emocionalmente somos bebês.

Nós, seres humanos, somos extremistas - é tudo ou nada. Dizer que uma coisa é mais ou menos é ofensa. Dizer que algo está “meiaboca” é desprezo puro. Ou o homem é o melhor ou é o pior. Se a conversa se dá num hospital, o homem quer ser melhor até no pior. A doença dele sempre é mais grave do que a do outro, a dor dele é mais aguda, o ferimento é mais feio.

O desejo de ser o melhor vai de encontro com a dualidade VIDA OU MORTE. Se ele não for o melhor, será, então, o pior. E para o melhor tudo – para o pior nada. Como no Coliseu em Roma, nas lutas de gladiadores - para o vencedor a vida, para o perdedor, a morte.
Por trás desta competição de querer ser o melhor vem o medo. O medo da morte, o medo da dor, o medo do sofrimento.

Os seres humanos são frágeis, vulneráveis e temem os outros, quase como em LOST. O outro é o inimigo, mesmo sem saber quem é o outro, ou melhor, exatamente por não saber quem é o outro. A falta de conhecimento, proximidade, intimidade nos isola, cada um numa ilha particular de solidão.  E por sermos frágeis e sozinhos em nossas ilhas tememos os outros, das ilhas vizinhas a nossa. E temendo nos defendemos. Criamos barreiras, fortes armaduras, colocamos fossos com crocodilos e cercas eletrificadas. Tudo para manter o outro longe. E ficamos sós, isolados, sem fazer trocas, sem amor.

Mas o homem é um ser social. Ele precisa de outros homens, então sai armado até os dentes, vestido de camuflado, usando pintura de guerra para fazer amigos. Olha que coisa linda! Imagina se ele consegue fazer algum amigo deste jeito, cheio de defesas e armas? Consegue não e fica mais sozinho, sem ter com quem trocar, sem confiar em ninguém, isolado, infeliz.

Lá fora a natureza é exuberante, o sol está brilhando e a primavera encheu tudo de flores, mas o homem não pode ir nadar no mar, pois a armadura pesa e puxa ele pra baixo e ele pode se afogar. O homem não pode jogar vôlei, pois as armas que carrega nos ombros - e não pode soltar - não deixam mobilidade para saltar e bater na bola. O céu está de um azul perfeito, mas a viseira da armadura faz sombra sobre seus olhos e ele não consegue ver a beleza do céu sobre si. Pobre homem. O peso do seu equipamento de defesa consome toda a sua energia e ele está sempre cansado, exausto. Gasta grande parte do seu dia fazendo manutenção em todo o seu aparato.

Mas do que, afinal, o homem se defende tanto?
Se defende da dor, teme outros homens, teme a negatividade deles, a destrutividade deles, a hostilidade, a mesquinharia, a injustiça. As exigências que os outros fazem ao mundo e, por conseqüência, a ele também. Dói a dor de ser ferido pelos outros e dói o peso de se manter em guardar 24h por dia. Dói viver. Dói morrer. O homem caiu numa armadilha. Acreditando que o mal está lá fora, ele se tranca em si mesmo, e se torna seu próprio prisioneiro.
Mas se esse homem vê o mal lá fora, nos outros, os outros vêm nele este mesmo mal. Afinal de contas, um é o outro do outro. Então o mal está em toda parte, em todos os homens e todos se defendem de todos. E de quem é a culpa?  Meus senhores e senhoras, de quem é a culpa?

Tem uma piada que diz que se o sujeito se meteu na maior encrenca e está sorrindo, é porque ele já sabe em quem vai colocar a culpa. É isso mesmo, a culpa é sempre do outro, é claro! O outro que é mau. O outro que é pior. Eu sou bom. Eu sou melhor que ele. Eu mereço viver, ele merece a pena de morte. Como as coisas ficam claras de entender quando tudo é visto nos extremos! Para nós, humanos é oito ou oitenta. Lembra?

Se eu sou bom eu mereço tudo. Se eu sou mau, eu mereço nada. E quem quer admitir que não é bom? Porque ou você é 100% bom ou 100% mau, não existe meio mau ou meio bom, como não existe meio grávida ou meio buraco. Na nossa percepção extremada é tudo ou nada. Logo, não posso admitir ser meio ruim, porque esse ruim vai comprometer, contaminar, poluir o meu meio bom e tudo estará perdido. Se caiu veneno no leite, não dá pra beber só meia caneca, achando que o veneno foi todo pro fundo. Então achamos que se admitirmos nosso meio mau, estaremos admitindo sermos maus por inteiro, contaminados, perdidos para sempre. E aí, como admitir esta parcela do mal, mesmo que pequena para alguns e um pouco maior para outros, esta parcela do mal que polui, contamina, infecta todo o restante? Não dá para admitir. Não sobra meio bom. O leite todo azeda.

Considerando-se contaminado pelo mal, assim, como o estigma de uma doença que desfigura, o homem esconde suas feridas, esconde as chagas atrás de máscaras construídas com muito cuidado para não deixar os outros saberem que ele é mau. Mas não basta esconder-se dos outros. Pra ficar mais convincente, é melhor esconder-se de todos, inclusive dele próprio. É melhor acreditar que é a própria máscara. Assim é mais fácil viver, ignorando que se é um condenado a morte.
E como num baile de máscaras, os humanos saem por aí, carregando um arsenal de defesa e uma máscara sorridente no rosto.  Todos em busca de amizades e relacionamentos sinceros e saudáveis. Que lindo! Existe ilusão maior?

Aos poucos a mentira vira verdade, a máscara vira a pele, as armas viram os músculos e o homem se transformou tanto, que nem ele se reconhece mais.

Se ele não sabe mais quem realmente é, o falso e o verdadeiro se mesclaram no tempo, se ele se perdeu dele próprio, em quem vai confiar?  Nele? Ele se julga perverso. No outro? Nem pensar! Em Deus? Se ele não estabelece contato consigo mesmo, como vai estabelecer um contato real, autêntico, verdadeiro com Deus?

O que fazer então? Largar tudo no chão de uma só vez e ficar assustadoramente vulnerável? A sua pele já nem sabe mais sentir o toque do sol. Os seus olhos, há tanto tempo vêem o mundo por de trás da máscara que a luz fere. Os seus músculos estão tão tensos por carregar todo aquele armamento pesado que relaxar dói.

O que fazer então?  Continuar a se proteger dos outros como vêm se protegendo? Isto ele já não suporta mais. Ficar sem proteção? Ele não pode. Então, qual proteção seria a ideal? Qual proteção seria adequada a este pobre homem, quase uma sombra de quem um dia foi?

A proteção mais adequada é encontrar a verdade, a verdade abandonada há tempo, escondida embaixo das defesas, embaixo dos armamentos, embaixo das máscaras. Só descobrindo quem realmente é, o homem saberá sua real força.

As falsas verdades que acreditou por toda a vida e o levaram à armadilha que se encontra, já não oferecem mais nada. Apenas engano e dor.

O homem precisa fazer o caminho de volta a si mesmo.
Mas como? Está tão longe dele próprio, sua memória tão adulterada pelo desejo de ser outro que não ele mesmo, alguém que ele imaginava melhor, mais forte, mais bonito, mais poderoso, mais qualquer coisa que ele acreditasse que o manteria a salvo do outro, que ele não lembra mais quem é.

Mas apesar da loucura do homem, da insanidade que tomou conta dele por conta do medo, ele deixou pegadas, deixou pistas, deixou migalhas pelo caminho como João e Maria. Os sinais ainda estão por aí.

Quando o homem está impossibilitado, pelo medo, de olhar para dentro, ele pode se guiar pelo que vê lá fora. Em cada homem a Vida coloca um espelho. E cada vez que vemos o outro, temos uma oportunidade de nos vermos refletidos nele. Este espelho é a nossa bússola. É ele que vai nos ajudar a encontrar o caminho de volta.

Cada pequena coisinha que nos incomoda no outro é um sinal. É uma luzinha vermelha que pisca dizendo que encontramos mais uma pista de quem somos, mais uma pecinha do nosso quebra-cabeça. São essas luzinhas que nos guiarão de volta a nós mesmos.

Foram os nossos defeitos, “o veneno misturado ao leite”, que não queríamos ser e lutamos por esconder, que nos levaram a usar uma máscara, que mais tarde se tornou nossa segunda pele. Foi por não querer ver os nossos defeitos que nos escondemos de nós mesmos. Logo, o caminho de volta consiste em olhar tudo o que rejeitamos ver em nós. Olhar cada pequena mesquinharia, cada hostilidade endereçada a alguém próximo, cada negatividade fedida que nos envergonhava.

Encarar o pior em nós requer coragem, muita coragem e requer também determinação. Muitas vezes vamos querer olhar pro outro lado ou vestir a nossa máscara. É preciso vencer a tentação de fugirmos de nós mesmos para podermos nos encontrar frente a frente. No fundo acreditamos que dentro de nós existe um monstro. Um monstro que pode nos destruir com sua bestialidade, com sua destrutividade irracional e primitiva. Temos medo desta besta fera e fugimos do labirinto do Minotauro porque achamos que o Minotauro somos nós. Na verdade temos medo de nós mesmos, do mal que podemos fazer aos outros, do mal que já nos fizemos, nos desfigurando numa falsa imagem pra desfilar como bonzinhos. Pensar que somos uma fraude dói. Dói muito. Mas nós somos humanos, e com os humanos é tudo ou nada, vamos de 0 a 100 em 1 segundo.

Tem uma piada que diz que três homens estavam conversando e um dizia pros outros dois que o carro dele era fantástico porque fazia de 0 a 100 em 6 segundos, o outro querendo ser melhor, coisa de humano, dizia que o dele era mais rápido, porque fazia de 0 a 100 em 4 segundos, e o ultimo pra não ficar por baixo, disse que a sogra era melhor que os outros dois, pois subindo na balança, fazia de 0 a 100 em 1 segundo. O homem está sempre nos extremos.


Mas não é assim que funciona, o homem não é uma besta fera, nem tão pouco o mascarado que tenta parecer.  O homem tem qualidades e defeitos.  Mas para descobrir que ele não é esta fera, ele vai ter que conhecer a fera.

Há um anjo e um demônio em cada um de nós. Quando nos recusamos a enfrentar nosso demônio, ele nos assombra aparecendo no espelho de cada humano que encontramos pela frente. Nosso demônio não quer ser ignorado. Quer ser visto. E quanto mais fizermos para não vê-lo, mais força ele fará pra se mostrar para nós. Quanto mais fugirmos dele, mais ele aparecerá em todas as esquinas refletido nos demônios dos outros. Não há como fugir dele. Então, melhor é sentar e conversar. Descobrir quem ele é. E isto pode ser feito olhando pra ele refletido nos espelhos dos outros.

Os outros serão nossos guias. Quando o meu defeito for igual ao defeito de outra pessoa isto irá me provocar uma irritação. Quando não conseguir ver meus defeitos por conta das defesas e da máscara, vou precisar contar com os defeitos dos outros para conhecer a minha fera.

Tem uma canção chamada “Same Mistake”(James Blunt) que diz: “... And so I sent some men to fight, and one came back at dead of night. Said he'd seen my enemy. Said he looked just like me” que significa “... então, eu mandei alguns homens para lutar, e um voltou de madrugada, ele disse que tinha visto meu inimigo, disse que ele se parecia exatamente como eu...”. Meu inimigo se parece comigo e me prestará um enorme auxílio. Meu inimigo será meu grande aliado, mesmo sem querer, pois através dele verei  parte de mim mesmo. Mas apenas se eu quiser ver a verdade que quis esconder.
Descobrindo a verdade sobre quem é, o homem não precisará mais ter medo de si mesmo. Não achará que é um monstro sem salvação, será mais verdadeiro consigo próprio e encontrará menos o seu demônio espelhado nos outros. E tendo menos medo de si mesmo, terá menos medo dos outros, e então, poderá começar a se desfazer das suas defesas, das suas armaduras, do seu arsenal de ataque, e com menos peso, será mais flexível,  não precisará jogar a culpa nos outros por tudo, nem reagirá automaticamente às provocações,  podendo assumir a sua responsabilidade, a sua parte na confusão. Poderá sentir melhor a natureza e desfrutar dela e, poderá abraçar mais de perto aqueles que vierem ao seu encontro. E, quem sabe um dia, a sua pele tocará a pele de outro, os seus olhos verão sem viseiras e lentes, o ar entrará puro sem passar pela máscara e o homem, finalmente, entrará em comunhão com a natureza, comunhão consigo mesmo, com o outro e com Deus.

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