O
mito da criação de Adão e Eva e sua relação com a cosmogonia da criação do
próprio universo tem oculto em si, ao mesmo tempo, um sentido geral (criação e
expansão do universo físico) e um sentido particular (criação e desenvolvimento
do homem).
O
que é uma pessoa?
Uma
pessoa é uma parte do Grande Universo que, no processo de expansão e evolução
do mesmo, começa a tomar consciência de si mesma.
Partindo
dessa premissa, o mito do pecado original, num sentido cosmogônico, pode ser entendido
como uma tentativa de explicação para esse processo.
Vejamos:
O
processo de tornar-se consciente implica em desenvolver a razão e, por
consequência, no nascimento e crescimento do ego.
O
grande universo e tudo que contem, num nível mais profundo é completamente
indiferenciado: matéria é energia (e vice-versa), ondas são partículas (e
vice-versa), a presença de matéria e/ou energia curva e molda o espaço e o
tempo. O espaço, por vazio que possa parecer, é, em cada ponto, fervilhante de
atividade de criação e destruição contínuas de matéria e energia.
O
universo é, de certo modo, similar a um grande oceano e as ondas são a matéria,
a energia, o espaço, o tempo e, principalmente, os eventos e as interações.
Não
há diferenciação entre o universo e as ondas, do mesmo modo que não há
diferenciação entre as ondas e o oceano, pois, afinal, tudo é água.
É
curioso, mas não inesperado, que o Gênesis comece com uma referência ao grande
oceano indiferenciado:
“(...)
e o Espírito de Deus pairava sobre as águas (...)”.
Mas,
quando surge o homem, aquele pedaço do universo que corresponde à matéria que
forma seu corpo e espírito, passa, progressivamente, a ter consciência de si
mesmo.
Aquele
pedacinho do espaço-tempo, semeado ou fecundado por uma partícula ou centelha
divina (ou alternativamente, preenchido pelo “sopro de Deus”) germina para
tornar-se um ser dotado de consciência.
Nesse
sentido, o homem é barro, matéria-energia ou espaço-tempo moldado/forjado por
Deus e animado/ativado pelo “Sopro de Deus”, essa Semente/Centelha Divina que
cada um carrega dentro de si.
Com
a consciência, vem a razão e, com ela, o sentimento de ser diferenciado do resto.
A sensação de ser separado cresce à medida que a consciência de si aumenta. Com
a razão vêm a divisão e o julgamento.
Isso
é a individuação, é tornar-se um indivíduo.
Ora,
o ego, que cresce dentro do homem, é a serpente ou, como a imagem também pode
ser interpretada, é um parasita ou verme que cresce e tem o formato de
serpente.
É a
serpente que vai se interessar pela árvore do conhecimento do bem e do mal. Pois
o ego identifica conhecimento com poder. A tentação de comer seu fruto e, daí
em diante, conhecer e poder dominar/controlar/colocar ordem no mundo nos seus
próprios termos, é o desejo do ego.
A
serpente não está fora do homem e da mulher. É parte deles e é, ao mesmo tempo,
“o outro”, “o inimigo”.
Um
desejo que não se satisfaz ao provar o fruto, pois é como tomar água
ligeiramente salgada: a sede aumenta. Ao conhecer (apropriar-se da razão), o
indivíduo passa a querer ter e possuir, a querer competir com seus iguais (que
não considera mais iguais, pois diferenciou-se e agora considera-se um
indivíduo separado) e a querer manipular a natureza, o ambiente e os outros
baseado na sua própria agenda.
Em
suma, ao comer a fruta, é uma embriaguez. Um êxtase que traz o conhecimento da
individualidade e anestesia o conhecimento do todo e das interconexões.
Essa
embriaguez faz com que o homem perca a consciência do seu “eu divino”. Anuvia-se-lhe
a visão e essa “trave diante dos olhos” é como a catarata, que,
progressivamente, faz com que ele não enxergue mais a centelha divina dentro de
si, que é a sua ligação com os outros homens e com o Grande Universo.
O
egoísmo que advém da consciência da individualidade é o pecado original e que
faz com que o homem (Adão e Eva no sentido particular) seja expulso (exclua a
si mesmo, p0r sua própria “culpa”) do paraíso.
O
paraíso fica cada vez mais distante e passa a ser apenas uma lembrança distante
ou utopia, que ele perseguirá por muitas vidas.
A
Expressão “ganharás o pão com o suor de seu rosto” tem o sentido literal do
esforço e da luta para se manter vivo fisicamente, mas tem, também, o sentido espiritual
de lutar (consigo mesmo) para retornar à bem-aventurança, um sentido expresso
na declaração de Jesus “Eu sou o pão da vida”.
Retornar
à fonte ou ao paraíso significa recuperar-se da embriaguez da fruta e voltar a
ver o mundo e a si mesmo como parte de um mesmo todo. Reconhecer dentro de si a
centelha divina que é, ao mesmo tempo, uma fagulha ou partícula da divindade e
o próprio Deus dentro de si.
Não
é por acaso que o Buda identificou a raiz do sofrimento com o desejo e o apego.
Não o desejo no sentido de atração física/sexual entre Adão e Eva, mas sim no
sentido de querer ter e possuir ao invés de querer ser. O “ter” por oposição ao
“ser”.
Redescobrir
a união essencial de si mesmo com o todo é reconhecer essa indiferenciação com os outros (que também possuem a partícula
divina dentro de si e, portanto, são parte do mesmo Deus) e entre si mesmo e o Grande
Universo, que é uma extensão (ou uma das dimensões) do seu Criador.
Voltar
ao paraíso é perceber e sentir-se não como uma onda vagando no oceano, mas
enxergar e sentir sua verdadeira natureza que consiste em ser água, assim como
próprio oceano é água também. Voltar a esse estado (ou ao Paraíso) é, de certa
forma, o objetivo da verdadeira religião: Religar. Reconectar aquilo que está
(aparentemente) separado.
Retornar
ao paraíso é, ao mesmo tempo, voltar a enxergar a centelha divina dentro de si
e novamente ouvir a música resultante da ressonância dela com as outras
centelhas divinas. Reconhecer Deus dentro de si e entrar em sintonia com Deus
dentro dos outros, com o Grande Universo e com o Criador.
Pois,
afinal, como também disse Jesus: “O reino dos céus, está dentro de vós”.
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